segunda-feira, 25 de novembro de 2019

COLUNA DO ANDRÉ BORGES - GRANDE OTHELO


                                   *André Borges                                  

“Em 1923 ou 24, nasci pra mim mesmo, pois é daí que eu começo a lembrar-me das coisas. Para os outros, eu nasci em 1915” Foi assim que Sebastião Bernardes de Souza Prata, depois Grande Othelo, esboçou a autobiografia, que nunca chegou a ser publicada. Um violento infarto roubou-lhe a preciosa vida, aos 78 anos, no aeroporto de Paris, quando receberia na cidade de Nantes, um troféu do Festival des trois Continentes que completaria sua consagração como um dos maiores astros negros, no panorama internacional.
      Ele conta, numa entrevista dada ao pesquisador Jairo Severiano, como passou a ser chamado Grande Othelo, tudo começou em São Paulo:
       “Como Abigail, filha de Yara Isabel, que tinha me adotado, era nova, eu costumava acompanhá-la nas aulas de canto. De tanto ouvi-la, aprendi a “La Bohême” e o maestro me testou, disse que eu era um tenorinho e que um dia cantaria a ópera “Othelo”. Daí em diante ,lembra, passei a ser chamado de Othelo. Quando vim para o Rio e passei a trabalhar com Jardel Jércolis, ele achou que Pequeno Otelo não chamaria a atenção, mas que se anunciasse como Grande Othelo e depois aparecesse eu, pequeno, isso já era uma piada...”

     
Um dos que ajudaram na criação da Atlântida, onde, com Oscarito,  fez a inesquecível dupla de tanto sucesso no cinema brasileiro, Othelo teve seus maiores momentos com interprete nos filmes “Macunaima” e “O  assalto ao trem pagador”. No ano em que morreu, ele se preparava para participar das filmagens daquele que, há mais de 40 anos, era o seu sonho maior, o longa “Elite Club”, cujo roteiro tinha a sua assinatura. Pretendia misturar a história de Cinderela com o universo das gafieiras, que tanto o seduziu quando ele começou a freqüentá-las nos anos 30. Com sua morte, o projeto jaz no arquivo. 
              Astro de grandes musicais, do Carlos Machado, no antigo Cassino da Urca, em que interpretou sucessos como “Marchinha do Gago”, “Boneca de pìche”, “Rasguei a minha fantasia” e “No tabuleiro da baiana”. Grande Othelo, além de ator, foi compositor e  interprete e parceiro de Assis Valente e Herivelto Martins, na composição “Fala , Claudionor” São composições suas  “Saudades do Elite”, que ele apresentou no show “Grande Otelo Pede Passagem”:  (“ Ai que saudade do Elite / Do Elite de Júlio /Quanta recordação / Das
velhas trapalhadas / Com o mestre-sala e o fiscal do salão / Dos bales de fim de semana / Onde a cabrocha esquecia do forno e do fogão / Das  festas do padroeiro / Que é São Sebastião / Padroeiro do rio de Janeiro / Hoje  o Elite é tão diferente / Não é mais aquele ambiente”), e o “Samba-choro “conversa com tintureiro” (“Em saber o seu doutor está interessado / Porque é que não trabalho / E ando sempre alinhado / Que trapalhadas eu faço / A lei não alcança / São todas feitas lá na velha aliança”)
 



           Sua grande mágoa foi não ter sido  reconhecido como compositor. Mas também foi poeta e nos deixou alguns poemas, como este, sem título, escrito no verso de um envelope (“Vai passar / Eu sei que vai / Quero aproveitar / Enquanto ele durar/ Este é um carinho / Que faz de mim um garotinho / Feliz sem aborrecimento / Porém vai passar / Me deixa aproveitar / Pelo amor de Deus / Me deixa  viver”).




sexta-feira, 22 de novembro de 2019

CARTA À MÃE ÁFRICA


Ricardo Viana


         
- Ah mãe África! Como estás?
           Já se vão quase meio milênio que de teu seio fui extirpado.
                                         - Ah mãe, não tive tempo de te mandar notícias. Fora uma viagem longa, amontoados nos tumbeiros, inerte de doer os ossos pensava o quanto era bom correr livre por tuas savanas.
                                          - Ah mãe, durante essa viagem apocalíptica mais da metade de teus filhos morreram, ora por suicídio, ora jogados ao mar quando se rebelavam ou mesmo de saudades de ti.
                                            - Mãe, pensamos em orar juntos, mas, como uma torre de babel, não nos entendíamos, no meu silêncio clamei aos Orixas, mas não me ouviram em meio aquela orquestra dantesca de gemidos.
                                             - Aqui mãe, nesta terra iria aprender as coisas da fé, ganhei um nome, já não sou Zumbi, sou Za da silva, trocado por açúcar fui moeda viva cunhada à ferro e fogo com a efígie do meu dono e da fé católica.

             - Ah mãe, nos tiraram a alma, quero dizer quase perdemos nossa cultura. Submetidos a toda sorte de sofrimentos muitos de meus irmãos não viveram por mais de um ano.
                                                 - Num Domingo ensolarado, mãe, uma princesa enviada pelo pai Orixá parecia pôr fim ao nosso suplício, mas não assinou nossa carteira de trabalho, deixando hoje parte dos teus filhos do pai Brasil que ajudamos a crescer, desamparados somos 70% em média de semianalfabetos, favelados, presidiários entre outras humilhaçõe - Ah mãe, termino esta pedindo para não se esquecer de mandar notícias dos meus irmãos da Etiópia, Somália. Creio que dias melhores virão e viveremos numa verdadeira Democracia Sócio-Racial porque o grito de Zumbi ecoa dentro de nossa esperança...Graças a Jesus nossa alma  -Cultura- sobreviveu.
-           Axé a todos, mãe
                                                                                                                                     
                             Campos dos Goytacazes, 26 de fevereiro de 1999.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O SINDICALISMO E O MOVIMENTO NEGRO


  André Borges Edição:Adilson Gonçalves


A História do Movimento Sindical Brasileiro não registra o aprofundamento da participação e da contribuição do trabalhador negro-escravo nos vários ciclos econômicos do Brasil. Isso não aconteceu também na formação da classe operária e a sua consequente geração das riquezas na economia agrícola, predominante no Brasil Colônia. Economia essa caracterizada pelos latifúndios, em que os trabalhadores negros-escravos contribuíram com a sua força de trabalho.

   Até 1888, quando foi abolida a escravidão no Brasil, o trabalho escravo foi predominante.  Ao ser proclamada a República em 1889, o nascente setor industrial já abrangia os ramos da indústria têxtil, fundições, indústria de sabão, bebidas e produtos alimentícios.
    Antes de surgir o Movimento Sindical organizado, foi o negro-escravo quem mais contribuiu com sua força de trabalho, gerando riquezas que propiciaram o desenvolvimento da nossa incipiente economia, seja ela nas minas de ouro, nos canaviais e  engenhos de açúcar e nos cafezais. Essa contribuição foi fundamental para o aparecimento das primeiras fábricas, nas quais o negro-escravo participou com a sua força de trabalho, sendo que o seu respectivo salário era entregue ao seu então proprietário, seu senhor.
Para o desenvolvimento do trabalho assalariado no Brasil, foi fundamental a leva de imigrantes europeus que trouxe – de 1871 até 1920- três milhões, trezentos e noventa mil trabalhadores estrangeiros que, segundo o censo de 1893, apenas na capital de São Paulo, constituíuram aproximadamente 55% da população e 71% da força de trabalho. Em contrapartida, nada se diz sobre a participação dos trabalhadores-negros no mercado de trabalho da época.

Atualmente, além de organizados em várias entidades em que se constitui o Movimento Negro, os trabalhadores se encontram organizados também nos sindicatos e nos partidos políticos. Mas a participação do trabalhador-negro no Movimento Sindical não tem sido objeto de estudos ou pesquisas. Em consequência disso, tem-se uma ideia bastante vaga da forma como se processou a ascensão do trabalhador-negro na atual estrutura do Movimento Sindical. Embora se tenha conhecimento da sua efetiva participação nos sindicatos, onde ocupam espaço na direção de alguns; nas Federações e
Confederações e nas centrais Sindicais hoje existentes no Brasil, não se sabe ainda a real contribuição do trabalhador negro-escravo ao nascimento da classe operária no Brasil. Não se tem dados que possam responder à seguinte indagação: o trabalhador-negro encontrou alguma resistência de caráter racista que dificultasse sua integração e a consequente Ascensão no Movimento Sindical? Essa indagação é pertinente quando se sabe que, nos seus primórdios, a organização do Movimento Sindical foi fortemente influenciada e dirigida pela tendência anarco-sindicalista aqui chagada com os imigrantes europeus, de onde se origina o domínio colonial, juntamente com as mazelas do sistema escravista aqui estabelecida

Por não se ter discutido com profundidade a questão do trabalhador-negro no Movimento Sindical, este Movimento não incorpora em suas lutas as reivindicações específicas do trabalhador-negro. Daí a urgente necessidade de se levar essa questão para uma discussão com maior profundidade, em razão do avanço que  vem demonstrando a organização do Movimento Negro e a consequente estratégia da luta pela efetiva  participação dos afrodescendentes  no  poder político do Estado brasileiro, sem o quê jamais se consolidará a necessária unidade da nação brasileira, para  continuar a luta pelo desenvolvimento e a defesa da soberania nacional, seriamente ameaçada pela  política implementada pelas grandes potências, com vista a recolonizarão do Brasil.

*André Borges, 87 anos, é escritor, autor de cinco livros, um dos fundadores do PDT e do Partido Socialista e Liberdade, do qual é integrante da corrente Primavera Socialista, participou ainda da criação da Confederação Geral dos Trabalhadores
do Brasil (CGTB) e foi Vice-presidente do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) no Rio de Janeiro, ligado à questão racial, e Coordenador Estadual-Adjunto do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

sábado, 19 de outubro de 2019

OS NEGROS E A REALIDADE BRASILEIRA


André Borges 

construção e a ocupação do Estado brasileiro,foi feita da forma mais violenta possível. A chegada do colonizador a este país, com seus costumes, roupas, formas de falar e a diferença cultural, sem dúvida alguma, se constituiu na primeira e mais evidente forma de violência cometida por aqueles que se tornariam escravizadores dos povos aqui já existentes e dos que foram arrancados, à força, do continente africano. Estes povos que constituíram a diáspora negra no Brasil, sofreram as mais diversas formas de violência, por mais de 3 séculos sob o regime de escravidão. Muito embora esta forma cruel de dominação tenha sido sempre rechaçada pela resistência, que resultou nos vários levantes e revoltas que constam da nossa história.
Ao termino desse período, e com o respectivo fim da escravidão institucional, o Estado Brasileiro sequer garante à Diáspora Negra Brasileira as condições necessárias para que se possa exercer uma cidadania para aqueles que tanto contribuíram para o crescimento desse país .Tais como: titulação de terra moradia e subsidio legais para se manter nela, haja vista que , a economia era basicamente agrícola
Garantia esta dada aos emigrantes europeus e japoneses na década de 30 no século passado .Caracterizando com isto uma outra forma de violência do Estado Brasileiro que é a omissão pois ele não se manter neutro diante todo esse desmazelo com a população negra .Como consequência essa política criou um abismo sócio-econômico que tende a aumentar ,   caso não sejam criados mecanismos capazes de frear o recrudescimento da violência contra a população negra.
De acordo com o Secretário Geral da ONU – kofi Annan – “Em todo mundo, minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente menos escolarizadas do que o grupo dominante .  São minoritariamente representados nas estruturas políticas e majoritários nas favelas, nas prisões e outras formas de guetos sociais. Não têm acesso ao serviço de saúde e nem expectativa de qualidade de vida. Estão sub-representação nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões tem menos acesso a serviço de saúde de qualidade e, consequentemente menos expectativa de vida .Esta e outras formas de injustiça social se constituem na mais cruel realidade do nosso tempo, mas não precisam ser inevitáveis no futuro.”


A despeito de todo esse histórico, nos dias atuais, estes fatos ainda são motivos de grande preocupação para a comunidade negra. É o que dizem as estatísticas oficiais abaixo.
       No Brasil, nos últimos vinte (20) anos, a violência matou cerca de 600 pessoas.  Isso corresponde a uma média de 30 mil pessoas por ano, Esses dados demonstram que, em época de guerra, mesmo em países como foi o caso do Vietnam, onde 68 mil pessoas foram mortas, não morreu tanta gente assim.
       Segundo dados do IBGE, existem, “atualmente”, 87 homens para cada grupo de 100 mulheres, sendo que , as mortes violentas acontecem mais com os homens do que com as mulheres , sobretudo na faixa etária dos 15 aos 44 anos, a situação ainda é mais dramática, sobre tudo quando fazemos a subdivisão dessa faixa que é dos 15 aos 24 anos, representando  57% dos casos. Isso equivale dizer que nossos jovens estão cada vez mais vulneráveis a violência nos dias atuais. Se formos dividir este percentual por grupos étnicos, verificaremos que os grupos mais atingidos são os formados por jovens negros.

Após 4 dias de intenso trabalho, foram  votadas e aprovadas  a Carta de Brasiléia, grande parte das Resoluções e Moções, dentre as quais, por absoluta falta de espaço, destacamos as mais importantes. A IX Conferência Nacional de Direitos Humanos foi encerrada por representante da sociedade civil, Senhor Ivônio  de Barros o  representante da Secretaria Especial de Direitos Humanos, senhor Perly Cipriano.

Resoluções

1. Criação do Sistema Nacional dos Direitos Humanos;
2. Elaborar Plano Nacional, Estaduais e Municipais de Direitos Humanos;
3. A concepção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema Nacional dos Direitos Humanos deve ser  entendida à luz da Proteção Internacional da Pessoa Humana;
4. Criar e fortalecer as Secretarias Estaduais e Municipais de Direitos Humanos como órgãos de coordenação das políticas de direitos humanos, ligadas ao Poder Executivo, e independentes da Secretaria de Segurança Pública;
5. Promover a reparação de danos causados a segmentos indígenas, afrodescendentes e ciganos, por meio de políticas e ações afirmativas;
6.  Ratificar todos os protocolos e tratados internacionais da ONU e OEA e retirada de todas as reservas aos mecanismos internacionais e implementar mecanismo legislativos como o Protocolo Facultativo do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial –CERD, as Convenções da Organização do Trabalho-OIT, números 29, 100, 105, 111,138,132, e ECA. Regras  Mínimas de Tratamento dos Presos das Nações Unidas e Lei dos Refugiados entre outros;
7. Primazia dos Direitos Humanos sobre a macroeconomia: rompimento com o FMI; não à ALCA, auditoria  da Dividia Externa, Plebiscito oficial sobre a Dívida e regulamentação do imposto sobre grandes fortunas;
8. Combater o racismo e garantir a titulação e infraestrutura para comunidades remanescentes dos Quilombos;
9. Criar sistema de cotas para pessoas afrodescendentes nos cargos em comissão nos diversos poderes;
10.                 Criar programas de ações afirmativas na saúde, para atendimento às doenças prevalentes na população negra.


Moções

1.Repúdio ao Governo Federal e o Congresso Nacional pela aprovação do salário mínimo;
   2.Repúdio â atual política econômica;
   3. Repúdio à realização da VI licitação, que significará a entrega do nosso petróleo às multinacionais;
   4. Repúdio às constantes violações dos direitos humanos promovidos pelos Estados Unidos, à ocupação de países autônomos, à violação das leis internacionais e à manutenção de “prisioneiros de guerra” nas bases militares do Estados Unidos. Solicita também a retirada das tropas estadunidenses dos países invadidos e ocupados;
        5. Repúdio ao bloqueio econômico e político dos Estados Unidos contra Cuba;
         6. Moção de solidariedade ao povo e ao governo de Cuba frente às agressões promovidas pelo imperialismo norte-americano.   
                   

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

POEMA INTEGRANTE DO LIVRO ETERNO AMANHÃ POEMAS DA PRISÃO


                 VIETNÃ
     

André Borges
        

Vietnã
A moderna epopéia
De um povo à posteridade

Chuvas de bombas
de napalm
tingiram de sangue
de tuas crianças a infância
semeando a morte em teu solo
não te reduziram a cinzas
a férrea vontade de ser livre


Vietnã
(Davi moderno)
expulsaste já outros invasores

Lutas ininterruptas
quase te fizeram regredir
às cavernas
nunca porém
à escravidão

Vietnã
uma flor mais de liberdade
nasce no Oriente
teu povo há de voltar
tranqüilo
sorridente
novamente
aos verdes-ondulantes arrozais
Vietnã
És o poema épico
Que um bravo povo
estoicamente
escreveu no livro da humanidade
















quinta-feira, 8 de agosto de 2019

IN MEMORIAN DE WILLIAN DA SILVA LIMA, COMPANHEIRO DE LONGA VIAGEM


“Passei mais de 30 anos na cadeia,

para onde não quero mais  voltar. “

E assim, como queria, Willian morreu em liberdade

AO querido amigo, WILLIAM da Silva Lima, poeta e escritor, autor do livro 4OO  X UM, falecido recentemente. Carta trocada ainda no cárcere.
Penitenciária Lemos Brito
Rio de Janeiro, de 18 de fevereiro de l966

Caro William:
Espero já teres te comunicado com o Acyr. Estou muito satisfeito em saber que tudo está correndo bem contigo. Sei que a luta ai fora é árdua, mormente para aqueles que têm um ideal a defender!
William, eu tenho recebido tuas cartas, não as tenho respondido pelo motivo de já saberes de quase tudo daqui de dentro. Transmiti teu recado ao Batista; ele vai te escrever também.
Cada companheiro que sai daqui deixa uma espécie de vácuo em nossas vidas... Vamos nos sentindo cada vez mais sós; de que serve serem tantos quando os que realmente estimamos são poucos? Quando poderemos reunir a grande família em torno da mesa universal? Ansiamos pelo momento de romper essas barras de ferro que nos espreitam com olhar frio nessa imensa noite de nosso existir... Ah!... Se eu pudesse fazer uma incisão no bojo do tempo e transformar as horas e os dias em simples, rápidos instantes!
Então o homem viveria séculos. Será que eu não vivi séculos nesses anos em que aqui me encontro?
Tenho a impressão de ter dado um profundo mergulho no mar do tempo. Serei velho ou moço? Estarei dentro do universo ou terei o universo dentro da cabeça?...
Estarei ficando "louco"?... Mas será que um louco faria semelhante pergunta? Não... Talvez seja o delírio provocado pela pressão angustiosa dessas grades... Para uns, é o símbolo do progresso... O ferro que alimenta as grandes indústrias, que constituem o pilar do mundo moderno... Para mim, são apenas o sinete da escravidão: – Grades!... Argolas!... Escravos... Brancos e pretos... Argolas e grades.
William, eis aí um instante de estranhas reflexões. O que fazer com as mesmas? Jogá-las fora? Eu não as quero aqui. Podem perturbar-me o sono. As noites aqui são longas, como bem sabes; e eu preciso dormir.
Por isso, embrulhei-as neste papel e as envio. São tuas, faz o que quiseres.
Por favor, não as devolva, William.
Elas podem cismar de entrar novamente no meu cérebro.
Atenciosamente,
André Borges



da carta acima, surgiu o poema abaixo
REFLEXÕES
André Borges

Ah! Se pudesse
fazer uma incisão
no bojo do tempo
transformar horas e dias
em simples instantes...
ah! Se pudesse
o homem viveria séculos



Não terei vivido séculos
nesses anos de cativeiro?
Dei um mergulho
Profundo no mar do tempo
Serei novo ou serei velho? 
Estou com a cabeça
dentro do Universo
ou tenho o Universo
dentro da cabeça?
Não sei
Talvez sejam delírios 
destas grades
grades, sinete da escravidão
ferro que alimenta
as grandes indústrias
o pilar do mundo moderno
Grades
argolas
escravos
pretos e brancos
brancos e pretos
argolas e grades
quando serão transformados
em arados?

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Paralelismo*

(William da Silva Lima)

Ontem:

Maria Pureza

- Fábrica -

Sacrifício, beleza.

Hoje: Maria desdita

- Prostituição -

- que vida maldita!

– Amanhã: Maria Farrapo

Não tem casa.

Nem nome.

Pouco dorme.

Um trapo!

Ontem:

Joãozinho engraxate.

– Vai ser doutor?

– Jogador?

Que disparate!

Hoje:

João que não existe.

– Delinquência que vida triste!...

Amanhã:

João aos pedaços!

Hum!...

Já não aguenta!...

Morre de fome e de cansaço.

* Este poema também recebeu classificação entre os finalistas, sem premiação.